De dentro do Palácio do Planalto, o 'espião' do
presidente conduz investigações e produz dossiês que já provocaram a demissão
de ministros
Por Thiago Bronzatto - Atualizado em 29 maio 2020, 11h02 -
Publicado em 29 maio 2020, 06h00
Coronel,
qual é exatamente a sua função? Sou assessor especial do presidente da República,
do gabinete pessoal. A gente trata de assuntos de referência ao presidente.
Que tipo
de assunto? A gente
faz trabalhos pessoais.
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Assuntos
de inteligência? Não.
Trabalho como assessor do presidente, mas não com o tema de que você está
falando.
O senhor
apura informações para o presidente? Não tem nada disso.
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O senhor
pode citar um exemplo do seu trabalho? O gabinete pessoal trabalha com as coisas do
presidente. Se tiver uma demanda, a gente faz um assessoramento, a parte de
compliance. É só isso.
Compliance? Pesquise o que é compliance.
Primeiro
a pesquisa: compliance, segundo o dicionário Aurélio, é um neologismo
que significa a “ação de cumprir uma regra, procedimento, regulamento,
geralmente estabelecidos por uma instituição e para ser cumpridos por quem dela
faça parte”. O profissional de compliance é o encarregado de observar se as
normas estão sendo seguidas. O trabalho do coronel do Exército Marcelo Costa
Câmara é bem diferente disso. Ocupando uma sala no 3º andar do Palácio do
Planalto, a poucos metros do gabinete do presidente, ele é um assessor mais do
que especial. Por determinação de Jair Bolsonaro, conduz investigações, reúne
informações e produz dossiês que já provocaram a demissão de ministros e
diretores de estatais, debelaram esquemas de corrupção que operavam em órgãos
do governo e fulminaram adversários políticos. Tudo de maneira muito discreta,
sem alarde, praticamente às escondidas
·
Pessoas próximas ao presidente costumam se referir ao coronel Câmara
como “o cara da inteligência”. “Ele só cuida disso. Todas as denúncias que
chegam, de dossiês a relatórios de informação, vêm dele”, conta um auxiliar de
Bolsonaro. O trabalho de “compliance” do militar surgiu no início do governo, a
partir de uma reclamação antiga do presidente que se tornou pública em meio às
acusações de que ele tenta impor maior ingerência em órgãos como a Polícia
Federal. Bolsonaro jamais confiou nos canais oficiais de informação, com
destaque para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por acreditar que é
composta de servidores ainda fiéis à gestão petista. Estaria, portanto, cercada
de inimigos, e o presidente precisaria de alguém de sua estrita confiança para
lhe passar informações verdadeiras, encaminhar demandas sobre assuntos
delicados e orientar inclusive assuntos de sua segurança pessoal. Marcelo
Câmara foi escolhido para a missão. Ex-assessor parlamentar do comando do
Exército, o coronel foi nomeado para o cargo em fevereiro do ano passado. Dois
meses depois, já mostrava a que veio.
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ESCÂNDALO - Alertado pela inteligência, Bolsonaro
demitiu o general Juarez Cunha e três diretores dos Correios Renato S.
Cerqueira/José Cruz/Agência Brasil
Havia uma
disputa de poder entre o então ministro-chefe da Secretaria de Governo, general
Carlos Alberto Santos Cruz, e Carlos Bolsonaro, o filho do presidente, que
suspeitava que o militar conspirava contra o pai. Na época, circularam
mensagens de WhatsApp, atribuídas ao ministro, com críticas pesadas a membros
do governo. Incentivado pelo filho, Bolsonaro quis demitir o general, mas
decidiu antes acionar o coronel Câmara, que investigou o caso e descobriu
tratar-se de uma armação contra o ministro, que ganhou uma sobrevida. Mais tarde,
porém, a mesma mão que salvou o general fez chegar ao presidente a informação
de que Santos Cruz o havia criticado numa conversa com colegas das Forças
Armadas durante um evento em São Paulo. O ministro foi demitido.
O governo
gosta de propagar que há mais de um ano não se registra um escândalo de
corrupção, o que, de fato, é algo louvável. Uma das ações bem-sucedidas do
coronel evitou que um caso embrionário pudesse estourar. Foi de sua pequena
sala que saiu o alerta, em meados do ano passado, de que havia desmandos nos
Correios. Em setembro, a suspeita foi materializada em uma operação da Polícia
Federal que investigou a atuação de um grupo de funcionários do órgão pela
prática de corrupção e concussão. Segundo a PF, os servidores instavam clientes
a romper contratos com os Correios e a contratar o serviço postal de uma
empresa ligada ao grupo criminoso. Antes de a operação estourar, porém, uma
limpeza já havia sido feita no órgão. Bolsonaro demitiu o presidente da
estatal, general Juarez Cunha, e três diretores. A ação que impediu o primeiro
grande escândalo de corrupção no governo foi creditada ao aviso prévio de seu
hoje braço direito e assessor especial.
INIMIGO - Há dois meses, a inteligência advertiu
Bolsonaro de um caso de corrupção que resultou na operação que teve como alvo o
governador Witzel Reprodução/Silvia Izquierdo/AP/.
O
presidente Jair Bolsonaro tem certo fascínio por serviços de inteligência.
Quando ainda estava no Exército, na década de 80, o ex-capitão foi transferido
para Nioaque, Mato Grosso do Sul, onde ganhou a função de “oficial de
informações”. A sua missão era produzir relatórios sobre a fronteira. Na famosa
reunião realizada no último dia 22 de abril com seus ministros, Bolsonaro
queixou-se de que não estava recebendo informações como gostaria. Disse que o
único serviço que funcionava era “o meu particular”. Após essa declaração, o
presidente foi cobrado a se explicar sobre o que seria esse sistema de
informações privado. Indagado sobre o assunto na última terça-feira, 26, ele
desconversou: “O meu serviço de informação reservado, particular, são as mídias
sociais, é o meu WhatsApp, são amigos que tenho pelo Brasil”, afirmou — o que
também não deixa de ser verdade (veja quadro na pág. 38).
Marcelo
Câmara, de 50 anos, não trabalha sozinho. Dois assessores ajudam a cumprir as
demandas do presidente — um capitão das Forças Especiais do Exército e um ex-policial
do Bope do Rio de Janeiro. No Planalto, o coronel não usa farda e apenas um
grupo restrito sabe, ainda assim muito por alto, o que ele realmente faz. “É um
agente de inteligência do presidente”, conta um ministro. Outro lembra que
várias vezes já ouviu Bolsonaro, diante de um problema, apontar para a sala ao
lado e dizer que ia “acionar o meu pessoal”. E o pessoal dele esteve em ação
para averiguar com lupa cada passo de Luiz Henrique Mandetta no comando da
Saúde. Desde o início do ano, o presidente tem sido municiado com informações
sobre suspeitas de desvio de dinheiro público tanto no ministério como no
Estado do Rio de Janeiro. Antes da pandemia, o então ministro já estava na
mira. A Covid-19, revelou a VEJA um assessor do presidente, ao contrário do que
se sabe, deu sobrevida a Mandetta no cargo.
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Em abril,
Bolsonaro recebeu em seu WhatsApp um vídeo de um apoiador que denunciava
contratos atípicos de aquisição de respiradores assinados pela Secretaria de
Saúde do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, adversário do presidente.
A mensagem, como de praxe, foi encaminhada para o coronel Câmara, que constatou
que ela tinha procedência e havia indícios de crime. Pouco tempo depois, o
Ministério Público do Rio deflagrou uma operação para prender os empresários e
funcionários do governo estadual supostamente envolvidos. Ao puxarem esse fio,
os investigadores trouxeram junto um novelo envolvendo um monumental esquema de
corrupção. Na terça-feira 26, a Polícia Federal realizou buscas na casa do
governador. A suspeita é que uma empresa contratada para construir hospitais de
campanha durante a pandemia pagou propina para ganhar os contratos
emergenciais. Witzel e sua esposa, Helena Witzel, são investigados como parte
do esquema.
TESOUREIRO - A advogada Kufa, dirigente do partido
Aliança: “Não sei qual é a função dele aqui” Pedro Ladeira/Ueslei
Marcelino/Reuters
Além de
farejar potenciais focos de corrupção, a pequena Abin do presidente vasculha o
histórico de pessoas com quem Bolsonaro tem contato ou que são nomeadas pelo
governo. No ano passado, essa checagem salvou o presidente do que poderia se
tornar no mínimo um grande constrangimento. Em uma viagem a Manaus, o
cerimonial agendou um almoço de Bolsonaro em um restaurante cujos donos eram
empresários ligados ao narcotráfico. Depois da intervenção do coronel Câmara, o
evento foi cancelado. Mais recentemente, o militar recebeu a missão de
verificar se os integrantes da equipe da então secretária de Cultura, Regina
Duarte, mantinham relações pretéritas com partidos de esquerda. Logo depois de
concluído o trabalho, a atriz pediu para deixar o governo. Esta, aliás, é mais
uma obsessão do presidente: a desconfiança de que é sabotado por adversários. O
coronel costuma fazer uma varredura nas redes sociais de ocupantes de cargos de
confiança para tentar descobrir “petistas infiltrados”. Já identificou vários —
todos imediatamente afastados.
Com a
mesma discrição, o coronel ainda cumpre uma missão fora do Planalto. Pelas mãos
de Bolsonaro, Câmara foi nomeado como segundo tesoureiro do Aliança pelo
Brasil, o partido do presidente. O que ele faz lá também é um mistério. “Não
sei qual é a função dele aqui”, confessa Karina Kufa, que, além de dirigente da
sigla, é advogada pessoal de Jair Bolsonaro. Embora na sombra, o fato é que o
coronel Marcelo Câmara é um personagem importante no organograma do poder.
Antes de encerrar a entrevista em que tentou minimizar suas atividades secretas
como um simples trabalho de compliance, ele sugeriu que um resumo de suas
atribuições estava disponível na agenda publicada no site da Presidência da
República. De fato, está tudo lá. Do início da manhã ao final do dia, durante
toda a semana, durante todo o mês, a agenda é quase totalmente dedicada a
“despachos internos”. Despachos internos? “Se não ficou claro é porque são
coisas pessoais sobre as quais não vou falar”, disse o espião do presidente
antes de educadamente agradecer e desligar o telefone.
Com
reportagem de Marcela Mattos