Opinião
O
presente artigo possui como finalidade discorrer sobre a possibilidade
de o servidor público que retornou ao cargo anteriormente ocupado por
força da anistia concedida nos termos da Lei 8.878/1994, a qual teve
origem na Medida Provisória 473/1994, contar o período de afastamento,
em virtude da indevida demissão, para fins de aposentadoria.
Inicialmente,
far-se-á uma análise do conceito de anistia, bem como dos motivos que
levaram a edição da Medida Provisória 473/1994.
A anistia constitui um benefício, perdão
coletivo ou medida de clemência do poder público aos agentes de crimes,
geralmente políticos, pela qual se declara extinta a culpa ou se releva
a pena, apagando-se-lhes os efeitos da condenação e reintegrando-os no
pleno gozo de seus direitos[1], do grego amnestía, esquecimento; daí amnésia[2].
No
caso discutido, a anistia foi concedida aos servidores públicos que
foram indevidamente demitidos no período de 16 de março de 1990 a 30 de
setembro de 1992. As referidas demissões ocorreram sem observância de
preceitos básicos constitucionais, tais como a legalidade e a motivação.
Nesse sentido, convém destacar trecho da exposição de motivos da Medida Provisória 473/1994:
3.
Convém ressaltar o Parecer do Relator do projeto de Lei nº 4.233 93,
Deputado Nilson Gibsom, na parte referente à observância da legalidade e
dos que lhe são correlatos (art. 37, da C), dentre os quais o da
finalidade e da motivação imposta ao agente público, onde discorre sobre
a ausência de motivação documenta nos atos de demissão dos servidores
que se propõe com esta medida a anistia às suas demissões[3].
Assim
sendo, foram reintegrados aos cargos os servidores: I - exonerados ou
demitidos com violação de dispositivo constitucional ou legal; II -
despedidos ou dispensados dos seus empregos com violação de dispositivo
constitucional, legal, regulamentar ou de cláusula constante de acordo,
convenção ou sentença normativa; III - exonerados, demitidos ou
dispensados por motivação política, devidamente caracterizado, ou por
interrupção de atividade profissional em decorrência de movimentação
grevista (artigo 1º da Lei 8.878/1994).
Os referidos servidores,
após o retorno à atividade, têm enfrentado dificuldades quando buscam se
aposentar, isso porque os órgãos analisam a referida situação partindo
de uma interpretação conferida ao artigo 6º da Lei 8.878/1994, que assim
dispõe:
Art. 6º A anistia a que se
refere esta Lei só gerará efeitos financeiros a partir do efetivo
retorno à atividade, vedada a remuneração de qualquer espécie em caráter
retroativo.
Com base no citado dispositivo, os órgãos aos quais
se encontram vinculados os servidores anistiados têm indeferido os
pedidos de aposentadoria, ao argumento de que não é possível contar o
período em que o servidor esteve fora do cargo, antes da concessão da
anistia, para fins de aposentadoria, uma vez que o benefício instituído
pela Lei 8.878/1994 somente gerará efeitos financeiros a partir do
efetivo retorno à atividade.
Nesse sentido, existe, inclusive, precedente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:
Administrativo.
Apelação de anistiado contra sentença que julgou os pedidos procedentes
em parte para: 3.1. Reconhecer o período compreendido entre 31/08/1998 e
11/2000 [2 (dois) anos e 3 (três) meses], como efetivamente laborado
pelo demandante, devendo ser este computado para o cálculo de sua RMI.
3.2. Condenar o INSS ao pagamento das diferenças apuradas, em razão do
item 3.1 supra, desde a concessão do benefício n. 143.133.509-3, com
correção monetária e juros de mora, na forma do Manual de Cálculos da
Justiça Federal, observada a prescrição quinquenal.
(...). O
demandante não tem direito à revisão do seu benefício para incluir o
tempo de serviço correspondente aos dois períodos de afastamento ilegal,
quais sejam [1 de junho de 1990 e o seu retorno, em 15 de março de
1995] e [19 de março de 1996 e o seu retorno às atividades em 31 de
agosto de 1998], em virtude da Lei 8.878/94. Vedação expressa no art.
6º, da Lei 8.878, de 1994, à percepção de efeitos financeiros
decorrentes da anistia: Art. 6° A anistia a que se refere esta lei só
gerará efeitos financeiros a partir do efetivo retorno à atividade,
vedada a remuneração de qualquer espécie em caráter retroativo. Tal
norma, assim como veda qualquer remuneração retroativa, coíbe,
implicitamente, também a contagem do tempo de afastamento para fins de
aposentadoria, pois implicaria em uma vantagem financeira indireta.
Precedentes. O recorrente faz jus ao reconhecimento do período laborado
entre 31 de agosto de 1998 e novembro de 2000, período contra o qual o
réu não se insurgiu na contestação, com as diferenças atualizadas,
consoante disposto na r. sentença. Apelação improvida[4].
No
entanto, não nos parece que o entendimento em questão esteja correto,
eis que parte de uma interpretação que amplia a restrição imposta pelo
dispositivo, bem como não condizente com o espírito que rege as leis de
anistia.
Nesse contexto, cumpre destacar que o intérprete, ao
realizar o ato de interpretação, no intuito de constituir o direito, o
faz a partir de um texto normativo em conjunto com a realidade. A
interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade, ou
seja, opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua
aplicação particular; ou seja, sua inserção no mundo da vida[5].
Dessa
forma, o texto jurídico só pode ser entendido a partir de sua
aplicação, isto é, diante de uma coisa, um fato, um caso concreto.
Compreender sem aplicação não é um compreender. A applicatio é a norma(tização) do texto jurídico[6].
No
caso concreto ora debatido temos uma norma jurídica editada no intuito
de combater uma ilegalidade: demissão/exoneração de servidores sem a
devida observância de preceitos legais (Constitucionais), de modo que a
realidade (contexto fático vivenciado à época de sua edição) não pode
ser deixada de lado no ato de interpretação.
Partindo dessa
premissa, temos que a interpretação que deve ser conferida ao artigo 6º
da Lei 8.878/1994 não pode ser outra a não ser aquela que vede tão
somente o pagamento retroativo ao servidor, a título de remuneração, em
razão do seu retorno à atividade. Dessa forma, não pode a legislação ou
sua aplicação (interpretação) trazer novos prejuízos ao servidor
anistiado além dos já experimentados em razão do ato ilegal combatido
pela norma.
Essa interpretação, impedindo novas restrições ao
servidor anistiado, condiz com a essência do instituto, que visa
minimizar os efeitos de um ato considerado ilegal. Nesse sentido,
esclarece o ministro Marco Aurélio em voto proferido no MI 626-1/SP[7]:
A segunda premissa diz respeito à anistia. Todo
e qualquer raciocínio deve ser desenvolvido de modo a conferir-lhe a
maior amplitude possível. Isso decorre da natureza jurídica do
instituto, que visa minimizar atos nefastos do passado, implicando a
reparação cabível. Por isso mesmo, há de desprezar-se interpretação literal, gramatical, que, embora seduzindo, acabar por esvaziar o benefício.
No mesmo sentido podemos citar o entendimento do TRF acerca da matéria: lei da anistia não pode ter interpretação estrita, mas consentânea com o espirito de generosidade que a ditou[8].
Assim
sendo, nos parece bastante claro que o artigo 6º da Lei 8.878/1994 não
pode ser interpretado de modo a limitar a contagem do período em que o
servidor esteve indevidamente afastado, por força da indevida
demissão/exoneração, para fins de aposentadoria.
Sob a ótica
previdenciária propriamente dita, também não se mostra adequado impedir a
contagem do período em que o servidor anistiado esteve afastado para
fins de aposentadoria.
Isso porque, conforme se depreende do
artigo 40, parágrafo 12, da Constituição Federal de 1988, o regime de
previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo
observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o
regime geral de previdência social.
Nesses termos:
Art.
40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e
fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e
solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos
servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios
que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste
artigo.
(...)
§
12 - Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos
servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber,
os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência
social.
Nesse contexto, como inexiste norma específica no âmbito
do Regime Próprio de Previdência da União disciplinando a matéria,
mostra-se adequado com o citado comando constitucional a aplicação da
legislação inerente ao Regime Geral de Previdência Social.
No
âmbito do RGPS, o artigo 60, inciso VII, do Decreto 3.048/1999 conta
como tempo de contribuição o período de afastamento do segurado
anistiado que, em virtude de motivação exclusivamente política, foi
atingido por atos de exceção, institucional ou complementar, exatamente
como na hipótese instituída pela Lei 8.878/1994.
Vejamos a redação do citado dispositivo:
Art. 60. Até que lei específica discipline a matéria, são contados como tempo de contribuição, entre outros:
(...)
VII - o
período de afastamento da atividade do segurado anistiado que, em
virtude de motivação exclusivamente política, foi atingido por atos de
exceção, institucional ou complementar, ou abrangido pelo Decreto
Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, pelo Decreto-Lei nº 864,
de 12 de setembro de 1969, ou que, em virtude de pressões ostensivas ou
expedientes oficiais sigilosos, tenha sido demitido ou compelido ao
afastamento de atividade remunerada no período de 18 de setembro de 1946
a 5 de outubro de 1988.
Perfeitamente possível, dessa forma, a
contagem do período de afastamento do servidor anistiado como tempo de
contribuição para fins de aposentadoria, não havendo de se falar na
aplicação do teor do artigo 40, parágrafo 10, da Constituição Federal de
1988, que veda a contagem de tempo de contribuição fictício, uma vez
que a própria legislação cuidou de tratar do referido período como
contributivo.